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Entrevista: Roberto Cunha defende reduzir a pegada de carbono dos setores de transporte e de uso do solo como essencial na luta contra a mudança climática

Explorando as conexões entre economia, meio ambiente e  crise climática, o consultor e professor da  formação Mudanças Climáticas e Energia propõe uma abordagem holística para a transição energética

Crédito da Imagem: Rio Oil & Gas

O Brasil possui uma matriz energética elogiada mundialmente, em que as hidrelétricas exercem papel relevante. Complementadas pelo crescente potencial eólico e solar, o setor elétrico do país emite baixas quantidades de gases do efeito estufa. No entanto, o Brasil ainda é o sexto maior emissor de carbono do planeta. 

A jornada em direção à neutralidade de carbono exige combinar diversas estratégias multifacetadas. No contexto do uso da terra, práticas como a gestão e o replantio de florestas são fundamentais para contribuir com a redução da emissão de gases do efeito estufa. No setor agrícola, a captura do metano emitido pela pecuária, apesar dos desafios, é uma estratégia com potencial de crescimento. Alternativas como a produção de biocombustíveis, a exemplo do biometano, veículos elétricos e ampliação do transporte coletivo de baixo carbono são vistos como soluções viáveis para reduzir a pegada de carbono no Brasil. 

Em entrevista para a Comunitas, o professor da formação Mudanças Climáticas e Energia, o consultor e CEO da EnClim, Roberto Cunha, discute os desafios e estratégias para a transição energética no Brasil, possíveis respostas às enchentes e resiliência climática, além da confluência entre energia, economia e meio ambiente.

Confira a seguir:

1 – Qual é o cenário energético do Brasil, e quais são as oportunidades para governos e empresas privadas atuarem na transição energética e no uso de fontes renováveis?

O Brasil tem, hoje, uma matriz energética muito elogiada no mundo, por uma questão histórica, natural e de disponibilidade de recursos. O nosso setor elétrico é, atipicamente, já baixo-intensivo em emissões por conta da predominância de hidrelétricas e do nosso potencial de produzir energia eólica e solar, que vem sendo explorado recentemente. E, no agregado, vem mantendo o nível de emissões cumulativas e conjuntas do setor como um todo bastante favorável com relação a outros países que não possuem o nosso mesmo potencial hidrelétrico, eólico e solar, e utilizam bastante térmica a carvão, gás natural e outras fontes baseadas em combustíveis fósseis, que termina por gerar uma carga de carbono e de efeito estufa muito maior. 

Esse é o perfil de emissões do Brasil. A gente tem esse quadro que, inicialmente, nos coloca em uma posição mais favorável, porém, ainda temos o nosso setor de transportes na matriz que compõe cerca de 50% de utilização dos combustíveis fósseis do país

O Brasil, na sua NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada, traduzido para o português) estabelecida pelo Acordo de Paris, indicou como uma meta, ainda indicativa, atingir a neutralidade de carbono até 2050. Para atingir esse objetivo, o país ainda teria que trabalhar hoje essa outra metade da nossa matriz energética, que pode ser compensada de outros setores, ou no próprio setor, mas, de qualquer maneira, a gente ainda precisa trabalhar e pensar onde essas emissões estão acontecendo para neutralizá-las, ou onde deixariam de acontecer. Ainda precisamos pensar qual vai ser o perfil de neutralidade de carbono do Brasil – lembrando que essa é uma neutralidade líquida, e não bruta. Isso não quer dizer que nós não podemos ter nenhuma emissão, mas sim emissões líquidas nulas. O que é emitido em um lugar, é preciso ser capturado em outro. Esse é o conceito básico do net zero. 

Vamos precisar encontrar um equilíbrio no setor de uso da terra, que engloba florestas, código florestal, replantio e etc. Existem muitas estratégias em discussão, e essas emissões do setor energético, que conta com muitas tendências acontecendo no mundo, como barateamento dos carros elétricos e discussões sobre hidrogênio verde mostram como a gente ainda tem muitas possibilidades. Nós ainda temos muito chão para saber exatamente qual vai ser o percurso do país nessa jornada. 

2 – Você pode falar um pouco sobre o biometano e os desafios enfrentados no Brasil para ampliar a utilização desse combustível no país, bem como as possíveis soluções para superá-los?

O biometano é produzido a partir de processos como aterros sanitários e uso de material biodegradável em fazendas, onde a gestão de resíduos emite metano. Capturado e tratado para remover o CO₂, esse biogás se transforma em biometano. Como o biometano provém de resíduos biológicos reaproveitados, ele é essencialmente semelhante ao gás natural, composto principalmente de metano. Portanto, misturar biometano ao gás natural é viável, já que o gás natural comercial contém cerca de 80% de metano.

Uma vez tratado, o biometano entra no mercado de gás natural, podendo ser vendido a preços competitivos ou até com um prêmio devido à sua pegada de carbono favorável. Capturar o metano, que seria liberado naturalmente, garante créditos de carbono, beneficiando quem captura. Além disso, a agenda ESG (Ambiental, Social e Governança, traduzido do inglês), faz com que clientes industriais paguem um preço mais alto pelo biometano, demonstrando seu compromisso ambiental ao público consumidor.

A gente está em um momento do biometano em que os primeiros projetos de aterros sanitários, que começaram a ser pensados anos atrás, estão começando a operar. Nós temos algumas plantas já em funcionamento, como no Rio de Janeiro (RJ) e em São Paulo (SP), que estão sendo lucrativas. Isso começou a chamar muita atenção, uma vez que se utilizou um resíduo que não tinha valor e adicionou o custo da atividade de capturar. 

Existe um custo enorme para se ter aquela infraestrutura para conseguir separar o CO₂. E aí se vai colher o preço do gás natural no mercado. Ou então, às vezes, até como um substituto do diesel, do GLT, e aí é só avaliar o melhor comprador. Em épocas como agora, em que o preço do petróleo está alto, devido à Guerra da Ucrânia, o produtor pode ter preços favoráveis e uma margem boa ao vender o biometano. 

Há uma grande animação no mercado porque a estratégia utilizada é ambientalmente benéfica e ecologicamente correta, alinhando-se com as metas de transição energética e políticas ambientais, além de ser lucrativa. Quando esses dois elementos são combinados, vai-se ter burburinho, movimentação, interesses de investidores, que querem saber cada vez mais, buscando as próximas oportunidades. Também se tem os gestores de políticas públicas buscando maneiras de ter mais disso e criar mais políticas. Esse é mais ou menos o contexto geral de biometano. 

Daqui para frente, onde nós estamos? O biometano que a gente tem hoje, o principal, vem dos aterros sanitários, visto que os aterros das grandes metrópoles são grandes concentradores de resíduos orgânicos, que já foram coletados pela cidade. Existe ali uma massa crítica de biometano a ser produzido. Esse é o local ideal para construir uma instalação industrial de separação de metano e carbono. E como fica próximo às grandes cidades, os caminhões já saem carregados de biometano comprimido e podem, a partir daí, distribuir o produto aos clientes.

É possível ver que já está acontecendo uma espécie de corrida no país para se pegar os outros aterros sanitários, que ainda não estão no mesmo patamar que os citados, sem a capacidade de fazer essa captura. Essa vai ser a 1ª onda, digamos assim, dos setores do biometano no Brasil, que é aproveitar esse potencial dos aterros. Em seguida, vai haver uma 2ª onda, que já está sendo discutida, nas grandes indústrias de alimento, de agropecuária, de bovinos, que também concentram uma grande quantidade de matéria orgânica (talvez não tanto quanto os grandes aterros), mas ainda em uma escala em que seja possível conceber alguma coisa, mesmo que de menor porte. Então vai haver uma segunda leva de indústrias, com menor escala local, mas que, no agregado do mercado, tem mais. 

Existe também um desafio adicional sendo explorado, que envolve o enorme potencial teórico dos resíduos orgânicos provenientes de bovinos, suínos e outras atividades agrícolas no país. Esses resíduos são bastante abundantes, mas estão muito dispersos geograficamente. Acontece em escala muito pequena, como em pequenas fazendas ou sítios, que estão mais isolados dos centros urbanos. Portanto, a quantidade que pode-se capturar, agregar e produzir de biometano é muito pequena. Seria necessário um sistema logístico enorme, o que acabaria por encarecer muito o produto. 

Nesse sentido, teoricamente, a gente tem um potencial gigantesco de biometano, bastante relevante na nossa demanda de energia. Porém, difícil de ser aproveitado por uma questão de logística e essas questões de escala e economicidade.

Atualmente, o foco principal está nos aterros sanitários, onde o interesse é maior, também impulsionado por uma conjuntura de preços favorável. Além disso, há um debate intenso sobre o potencial de outras indústrias, que não são aterros sanitários, para a produção de biometano. Esse debate é importantíssimo para a criação de políticas de incentivo. Em seguida, temos o potencial teórico, bem conhecido há muito tempo, mas ainda sem um exemplo clássico de aproveitamento econômico no cenário global.

4 – Por fim, gostaríamos de trazer o olhar para o que tem acontecido no Rio Grande do Sul. Diante do cenário do Estado, como é possível pensar em reconstrução levando em consideração as fontes energéticas? E como o plano de adaptação climática pode ser feito tendo em vista essa questão? 

Conforme a temperatura aumenta com o acúmulo de gases do efeito estufa, existe ao menos um risco de exacerbação de eventos extremos. Eventos como esses são eventos extremos e estamos diante de uma lógica de antecipar o futuro e se preparar. No Brasil, estamos expostos, visto que esse tipo de ocorrência é o mais comum de ocorrer, que são as grandes chuvas e enchentes. É um problema antigo do país que tende a aumentar. Corremos o risco que isso fique mais frequente e a gente tenha que lidar com episódios cada vez mais graves. 

Nesse sentido, aumenta bastante a responsabilidade dos gestores municipais, de trabalhar as políticas urbanas e o urbanismo nas cidades, pensando em como são feitas as construções e como os edifícios consomem energia – que, dependendo de como eles são projetados, afetam bastante o perfil de demanda energética da cidade. Também é preciso pensar o transporte público nas cidades, esses são dois eixos fundamentais que são da alçada das prefeituras. 

Nos países mais frios, as regras de construção determinam a insulação e o isolamento térmico do edifício e, em seguida, o consumo de calefação. Esse é um episódio clássico de discussão de transição energética nesses ditos “países premium”, que é trabalhar nas edificações. Mas aqui também temos ar-condicionado, temos calor, consumo de energia elétrica nas casas, às vezes, consumo de combustível fóssil, como GLP e gás, então, na minha visão, nós também temos questões a serem debatidas no setor de edificações das cidades. 

O urbanismo como um todo, como as cidades vão se estruturar e se adaptar para o risco de elevação do nível do mar, de tempestades e inundações, por exemplo, e a questão do transporte público, que seja preferencialmente de baixo carbono, além do transporte ativo, como bicicleta e a pé. Tudo o que for possível para ter um transporte público, coletivo, de baixa emissão, contribui bastante para a transição. 

É preciso criar políticas públicas compreensivas, o que a gente chama de smart strategies. Mas não adianta achar que o município pode fazer tudo. Se não houver um entendimento da realidade tributária entre os entes federativos, as possibilidades de financiamento dessas iniciativas – afinal, como vai ser possível fazer a adaptação de mais de 5 mil cidades em todo o país? – é inviável imaginar que os prefeitos, com seu próprio orçamento, vão conseguir implementar essas ações de forma isolada. É um grande desafio de coordenação de políticas municipais. 

A partir deste episódio triste do Rio Grande do Sul, temos diversos espaços de trabalho de adaptação, caso a temperatura continue a subir e esses eventos, de fato, se tornem cada vez mais frequentes. É importante, para além de pensar em mitigação, pensar na adaptação para preservar vidas e as próprias cidades. 

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