A especialista discorre sobre eficiência da máquina pública e como a cultura organizacional, bem como os servidores públicos, estão diretamente ligados
Seja no setor público ou privado, a gestão de pessoas é uma área estratégica dentro da organização. Porém, na administração pública, a importância da gestão de pessoas se faz ainda maior por que não existe mais a possibilidade de que as organizações atuem à revelia das demandas e opiniões de seus clientes e usuários. A população cobra mudanças urgentes e exige serviços melhores e mais eficientes.
Portanto, quem se antecipa às exigências da sociedade, gera um ciclo de mudança que impacta diretamente a vida de todos. Quando a gestão de pessoas busca dialogar com a cultura organizacional, é possível criar padrões de trabalho e orientar atividades de forma a se buscar a melhoria da entrega dos serviços à população.
Betânia Tanure*, especialista em gestão gestão empresarial, sócia-fundadora da empresa de consultoria de desenvolvimento corporativo, Betânia Tanure Associados (BTA) e membra da rede Comunitas, explica como uma máquina pública mais eficiente está diretamente ligada à gestão de pessoas e à cultura organizacional a que o servidor está submetido na entrevista abaixo.
1 – Quais são os maiores desafios relacionados à mudança da cultura organizacional em órgãos públicos e como se pode enfrentar esses desafios?
A “estabilidade” do serviço público, que pode ser uma armadilha contra o bom desempenho, também pode servir de alavanca para as mudanças necessárias. Trata-se de um desafio, com o qual aprendemos a lidar, e adaptamos nossa metodologia para esse contexto. Quando iniciamos um projeto de mudança de cultura, buscamos envolver, de forma rápida e assertiva, todos os níveis de gestão da empresa, de modo que os gestores, mas não somente os gestores, possam compreender e internalizar os aspectos da nova cultura e desenvolver-se para serem seus grandes disseminadores.
Isso significa ajudá-los, também, a alinhar seus próprios valores e comportamentos à nova cultura, uma vez que a liderança modela o comportamento dos seus liderados por meio do exemplo. Quando realizamos esse movimento amplo e forte que envolve as lideranças, os comportamentos desejados se disseminam mais rapidamente, e a nova cultura deixa de ser algo localizado e personificado no líder, passando a pertencer a toda a organização. Isso reduz o impacto das frequentes mudanças de liderança.
A necessária transformação, no entanto, não acontece apenas como resultado da mudança de comportamento. É produto da combinação de aspectos soft, relativos a comportamentos, com aspectos hard, como níveis de alçada, rituais de gestão, design organizacional, o que inclui processos e estrutura. A mudança desses mecanismos na organização pública representa um desafio adicional, ligado aos parâmetros que a legislação impõe. Mas é completamente possível.
Se há resistência? Certamente sim! Em qualquer processo de mudança, em nível individual, de times ou cultural. Em organizações públicas e privadas. Às vezes, mais fortes nas organizações públicas, que tem alguns constrangimentos que estão relacionadas a mecanismos que as lideranças têm à sua disposição para gerir, também regulados pela legislação, mas especialmente pelo modus operandi, ou seja, pela cultura. Com isso, as novas competências tornam-se ainda mais relevantes.
2 – De que forma é possível trabalhar o conceito de cultura organizacional em órgãos de governo e como isso se diferencia do setor privado?
Quando falamos em cultura organizacional, nós nos referimos aos valores de uma organização e à forma como as pessoas praticam esses valores (jeito de fazer), independentemente de se tratar de organização pública ou privada. A mudança dessa cultura requer dois movimentos sincronizados:
a. Conhecer a cultura atual, que chamamos de as is.
Nem sempre é fácil conhecer a própria cultura e compreendê-la, pois “o peixe não vê a própria água”. É preciso mapear, sempre, os lados “sol” e “sombra” dessa cultura e, com base no as is e na ambição da organização, desenhar, estabelecer com método e arte, o should be (o que deveria ser), ou seja, a cultura desejada.
b. Definir o papel da liderança, e de cada pessoa, como protagonista do processo de mudança.
Não é fácil, não é simples e não é rápido. Mas vale a pena! É a ação da liderança que modela o comportamento das pessoas e orienta o jeito de fazer da organização. E é nesse aspecto que localizamos o primeiro desafio da mudança de cultura organizacional em órgãos públicos. Existe a máxima de que, como o gestor público permanece por tempo determinado em seu cargo, não é possível conduzir mudanças culturais significativas. Essa desculpa verdadeira sobre a descontinuidade da gestão pode tornar-se uma armadilha contra a adesão das pessoas a projetos dessa natureza.
Primeiramente, é fundamental que as pessoas entendam a necessidade de mudança, que pode decorrer de fatores externos à organização (por exemplo, uma nova legislação) ou de fatores internos (desejo de atender melhor o cidadão e de forma mais eficiente). Uma vez que racionalmente as pessoas entendam a necessidade da mudança, é fundamental engajá-las pessoal e emocionalmente para que se sintam parte de um projeto significativo para cada uma delas e para todas. Estar engajado emocionalmente, no entanto, não é suficiente, pois na maior parte das vezes as pessoas não têm o repertório necessário para um “novo fazer”. Assim, é preciso instrumentalizá-las para esse novo momento, de modo que consigam rever atitudes e comportamentos e experimentar novas formas de operar.
3 – Pensando que a sociedade está em constante mudança, como o setor público pode acompanhar essa tendência?
Hoje em dia não existe mais a possibilidade de que as organizações, sejam públicas, sejam privadas, atuem à revelia das demandas e opiniões de seus clientes e usuários. As mudanças sociais são tremendas. Podemos ter a mudança na dor ou no amor… As empresas e as organizações públicas que se antecipam geram um movimento positivo e engajam não apenas os servidores, mas também os prestadores de serviços e os cidadãos. É uma mudança gigante!
Se se resiste a esse movimento, a mudança se faz pela dor: pressão popular que no final das contas será também espelhada no voto. E a opinião das pessoas está escancarada. Qualquer organização pode acompanhar, em tempo real, o que a sociedade fala ou espera dela. Temos bons gestores públicos, atentos às demandas sociais, e preparados para reagir a elas. Claro que não são todos, mas temos bons exemplos. E, como dissemos anteriormente, não é fácil, mas com vontade, determinação e foco um gestor público pode movimentar essa organização enorme que é o governo em direção a uma cultura que coloque a sociedade no centro de suas preocupações e ações.
4 – De que forma a cultura organizacional pode influenciar a qualidade de vida do funcionário (ou servidor)?
Sabe-se que a reputação do funcionalismo público é muitas vezes questionada e, é claro, isso impacta a autoestima deste grupo. Mudar a cultura implica em mudar o comportamento das pessoas, normalmente em direção a comportamentos muito melhores e mais produtivos. Isso tende a facilitar as relações e interações internas à organização – o que por si só já representa um ganho para as pessoas – e, com o tempo, os públicos de interesse e contato também percebem essa mudança. Esse fato gera um ciclo virtuoso, de percepção de melhoria e reforço positivo – seja pelas manifestações a favor, seja pela redução das críticas –, o que reforça a autoestima do funcionalismo.
Esse movimento alavanca os resultados da organização como um todo e reforça o propósito. É surpreendente o que o trabalho por um propósito pode provocar na vida das pessoas. Gera significado e satisfação.
5 – Atualmente existe um trabalho em andamento com os governos dos estados do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais focado na mudança da cultura organizacional do serviço público. Quais foram os principais desafios à época do início do trabalho e quais foram os avanços até agora?
Iniciamos o trabalho durante o período de pandemia. Realmente, foi um desafio conectar as pessoas, trazê-las para o projeto, engajá-las. E não porque elas não se mostrassem interessadas nesse processo de mudança. Muito pelo contrário! Sempre que iniciamos um projeto, realizamos um diagnóstico prévio que evidencia o lado sol da cultura atual – que sempre existe e que é importante preservar –, bem como o lado sombra. E quando falávamos do lado sombrio, as pessoas reconheciam e queriam mudar. Mas as questões tecnológicas, além de um repertório adormecido para uma nova forma de fazer as coisas, foram desafios importantes.
Além desses, todos os desafios sobre os quais falamos anteriormente estão, em maior ou menor grau, presentes nos diferentes projetos de mudança. Sabemos que a prática de feedback é fundamental para o reconhecimento dos problemas e para o desenvolvimento de pessoas e equipes, e também para alavancar os resultados, prática que naturalmente não está presente nas organizações brasileiras. Mudamos o fluxo natural, sensibilizamos, capacitamos e foi sensacional. Gestores e equipes abertas para ouvir e dar feedback pela primeira vez. NPSs (Net Promoter Score, métrica utilizada para medir a lealdade do cliente) em zona de excelência e um funcionalismo mais preparado para promover melhorias na sua forma de atuar. Não há dúvida sobre a potência desse movimento para a mudança de cultura e para que o cidadão seja mais bem atendido, e de forma mais eficiente.
*Betania Tanure é sócia-fundadora da Betania Tanure Associados, empresa de consultoria de desenvolvimento empresarial. Foi professora e executiva da Fundação Dom Cabral por 22 anos. É escritora, palestrante, colunista do Jornal Valor Econômico e atua em importantes Conselhos de Administração, tais como Magalu e MRV. Possui Doutorado em Administração pela Brunel University (Inglaterra), além de ter estudado e atuado em universidades na Europa e nos Estados Unidos. É graduada em Psicologia pela PUC de Minas Gerais e integrante da Rede Comunitas.
Sem comentários