por Igor Nogueira de Camargo*
O avanço da transparência pública no Brasil foi, e ainda é, um processo complexo, difícil e que enfrenta uma grande resistência, no entanto, estes obstáculos quase nunca são expostos para a sociedade porque no palanque, todo político é favorável à transparência, na realidade do cotidiano da administração pública é bem diferente.
A transparência não aceita retrocessos, qualquer tipo de decisão que objetive retirar dados ou suprimir informações será fortemente enfrentada e rechaçada, é o que ocorre hoje com a preocupante e revoltante retirada da série histórica de dados da pandemia do novo coronavírus no Brasil pelo portal da transparência desenhado especialmente para o enfrentamento da COVID-19.
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Numa decisão ilegal e autocrática o governo federal infringe de forma grave a Lei de Acesso à Informação (LAI/ Lei Federal nº 12.527/2011), a qual prevê diretrizes tais como: a divulgação de informações de interesse público, independente de solicitações (inciso III, art. 3º), o fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública (inciso IV, art. 3º) e o dever do Estado em garantir o direito de acesso à informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão (art. 5º).
O governo Bolsonaro acumula com esta decisão um terceiro ataque nocivo à transparência pública nacional. O primeiro ocorreu no início do governo, em fevereiro de 2019, quando o Executivo expediu o Decreto nº 9.690/2019, o qual atribuiu a outras autoridades, inclusive ocupantes de cargos comissionados, a competência para classificação de informações públicas nos graus de sigilo ultrassecreto ou secreto. Por movimento contrário, a Câmara dos Deputados suspendeu os efeitos da norma e o Senado Federal seguiu a mesma direção, o decreto foi derrubado pelo Legislativo. Esta foi a primeira derrota do atual governo junto ao parlamento, algo simbólico ao vivermos os dias de hoje.
O segundo ataque ocorreu em março deste ano, no início da pandemia, com a Medida Provisória 982/2020, a qual suspendia prazos de pedidos feitos via LAI nos casos que necessitassem do acesso presencial de servidores públicos, mediante as restrições de circulação por conta do novo coronavírus. A Rede, o PSB e a Ordem dos Advogados do Brasil entraram com ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal e uma liminar do ministro Alexandre de Moraes suspendeu os efeitos da norma, posteriormente o Supremo derrubou, por unanimidade, a medida provisória esdrúxula.
Presenciamos agora o terceiro cruel ataque ao instituto da transparência pública, em ato autoritário e obscuro, o governo Bolsonaro retira do ar a série histórica de casos de infecção e mortes pelo novo coronavírus. A atitude retrógrada despertou o alerta vermelho da Câmara dos Deputados e do Tribunal de Contas da União, o presidente Rodrigo Maia e o ministro Bruno Dantas, anunciaram que irão organizar mecanismos próprios para divulgar os dados em série histórica e fidedigna, obrigação esta que o Poder Executivo deixou de cumprir, em clara ilegalidade aos princípios constitucionais básicos da administração pública.
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O mundo assiste com pesar os rumos que o Brasil toma, a distinta Universidade Johns Hopkins retirou o país do painel mundial de controle da pandemia global devido a exclusão dos dados no portal do Ministério da Saúde, o país voltou a aparecer na plataforma na noite de sábado, dia 06/06. Em pronunciamento oficial na sexta-feira, dia 05/06, o presidente dos EUA, Donald Trump, colocou o Brasil como um péssimo exemplo a ser seguido no combate à pandemia, expondo mundialmente os erros primários que o governo federal vem cometendo ao se ausentar de uma efetiva coordenação nacional no enfrentamento à crise.
É preocupante, triste e desgastante vivenciar tantas violações à transparência pública nacional, um dos pilares da democracia brasileira construído com tanto esforço e que ainda tem tanto a avançar. O governo federal causa desgosto para aqueles que trabalham com o tema dentro da administração pública e eleva a atenção da sociedade civil organizada que defende e sabe da importância dos recursos de acesso à informação. A fatigada democracia brasileira precisa que as instituições do país se levantem e se posicionem com força e altivez frente a este, e outros vários, retrocessos graves que se não forem combatidos com a urgência que o momento demanda, colocará em real risco o sistema político brasileiro.
*Igor Nogueira de Camargo é gestor público de formação e prática, e graduou-se em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo em 2010. Em 2017, concluiu o Master em Liderança e Gestão Pública pelo CLP – Liderança Pública, em parceria com a Universidade de Harvard, Kennedy School of Government. Atualmente, é Diretor de Modernização da Gestão na Secretaria de Gestão e Controle da Prefeitura Municipal de Campinas, São Paulo.
Postado originalmente no jornal Estado de São Paulo.
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