por Gilberto Perre, secretário-executivo da Frente Nacional de Prefeitos (FNP)*
Gastar menos do que o arrecadado, equilibrando receitas e despesas, é premissa para os governantes e diretriz central da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Alguns indicadores da legislação, como os limites de despesas com pessoal e da dívida pública consolidada são bastante conhecidos e sistematicamente perseguidos por prefeitas e prefeitos.
Nesse contexto, a qualificação da despesa, a prevenção e o combate à corrupção, a desburocratização e modernização dos procedimentos administrativos e a busca pela eficiência da gestão são inadiáveis e inafastáveis. Importante registrar que experiências exitosas nessa direção são cada vez mais comuns e replicáveis. Contudo, são metas permanentes e diretrizes importantes, mas, não necessariamente, suficientes. É preciso enfrentar uma outra questão fundamental que a LRF apontou, mas não aprofundou: a qualidade da arrecadação própria. Afinal, como os entes subnacionais estão exercendo a sua obrigação arrecadatória? Como estão se comportando, de formas absoluta e relativa, os tributos próprios de cada ente subnacional?
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Um olhar apressado indicaria que a negligência tributária poderia dizer respeito apenas a alguns territórios. Mas, infelizmente, essa disfunção fiscal não é tão incomum. Por exemplo, e para elucidar quão disseminado é esse problema, comparemos o IPVA com o IPTU. É razoável supor que o patrimônio imobiliário de um município, incluso casas, apartamentos, terrenos e imóveis comerciais, oferece uma capacidade de tributação e arrecadação bastante superior ao potencial tributário do conjunto dos veículos automotores com emplacamento naquela cidade. Mas, 87% (4.816) dos municípios brasileiros contam com mais recursos do IPVA, repassado pelos estados, do que arrecadam com o IPTU. A título apenas de exercício: se os recursos angariados, com os dois impostos fossem equivalentes, daria para afirmar que R$ 14,2 bilhões são negligenciados, em IPTU, por esse conjunto de cidades a cada ano.
Quando um município ou estado não exerce adequadamente a sua prerrogativa arrecadatória, tornando-se ainda mais dependente de transferências, tende a ofertar serviços públicos de forma ineficiente. Ao precarizar serviços públicos, ou mesmo não os ofertar, a população daquele território busca respostas às suas necessidades em outras localidades. Ou seja, o tributo negligenciado em um território terá, de forma direta ou indireta, reflexos em outros territórios que cuidam adequadamente da sua arrecadação. Por isso, mensurar e evidenciar o esforço fiscal de cada município e de cada estado, instituindo um índice técnico para tal, ajudaria governantes e parlamentares, em última instância, a tomarem decisões na direção de uma gestão fiscal e social mais sustentável e eficaz, e de um federalismo mais justo e equilibrado.
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A sugestão não seria de elaboração de um “ranking” de arrecadação. Isso poderia gerar desconfortos desnecessários e análises contraproducentes, além de ser pouco adequado para estimular o esforço fiscal. Um caminho seria a elaboração de um índice de esforço fiscal como, por exemplo, no modelo do Selo Procel (Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica), que indica o consumo de energia e o desempenho dos eletrodomésticos.
Para a construção de um índice de esforço fiscal, o Brasil evidentemente dispõe de condições técnicas e bases de dados socioeconômicos suficientemente detalhadas e robustas. A combinação de esforços do Tesouro Nacional, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), por exemplo, com o apoio da academia, certamente poderia oferecer ao país um índice de esforço fiscal por tributo, e por ente federado. Naturalmente que considerasse as particularidades e potencialidades de cada território e a diversa a capacidade contributiva dos cidadãos e consequentemente o potencial de arrecadação do poder público.
Os resultados aferidos pelo índice, como o uso de faixas, poderiam ser utilizados como condicionantes, por exemplo, para a transferência de recursos voluntários, como critérios para a concessão e/ou autorização para operações de crédito ou mesmo para renegociações de dívidas. Poderiam ser instituídos requisitos que levassem em consideração não apenas a fotografia de momento, mas um compromisso do ente federado em avançar na melhoria do índice em determinado prazo.
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Um exemplo prático poderia ser a demanda de uma cidade pela construção de uma ponte. Para que houvesse a liberação de recursos provenientes de transferência voluntária ou de um eventual financiamento, a cidade precisaria fazer um esforço na sua arrecadação própria para avançar no índice. Para isso, seria imprescindível a promoção de um saudável debate político entre o executivo, o legislativo municipal e a sociedade para avaliar a conveniência, ou não, de se adotarem medidas para melhorar a arrecadação própria, ao mesmo tempo em que o município se credenciaria para acessar os recursos federais para a construção da almejada obra.
Assim como zelar pela qualidade, equilíbrio e correção dos gastos públicos, aprimorar a arrecadação, também, é dever dos governantes e dos parlamentares. Por isso, é fundamental que o país incentive, aprimore e mensure essa atribuição. Como bem disse o escritor Graciliano Ramos, “é fácil se livrar das responsabilidades. Difícil é escapar das consequências por ter se livrado delas”.
*Gilberto Perre, 54, é Engenheiro Eletricista formado pela Universidade de São Paulo (USP), com especialização em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Entre 2001-2008 atuou como diretor-financeiro e secretário municipal de Fazenda de São Carlos/SP. Em 2017 atuou como professor convidado do Instituto Federal de Brasília. Em 2018 fez curso de gestão pública na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Desde março de 2008 exerce a função de secretário-executivo da Frente Nacional de Prefeitos, a FNP.
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