*Por Bruna Santos, gerente de Conhecimento da Comunitas
Já é amplo o consenso de que um dos principais desafios que ocupa aqueles que trabalham com políticas públicas é a busca por soluções para que governos respondam à demanda por serviços de qualidade em face a orçamentos cada vez mais apertados. Ao pensarmos em boa governança, transparência e accountability, vemos a tecnologia como uma oportunidade para a redução de custos, ganho de agilidade e eficiência na hora de o Estado provir suas funções.
De fato, os mundos virtuais e analógicos estão cada vez mais interligados e as tecnologias digitais redefiniram a vida urbana nas cidades no século XXI. No entanto, alcançar a democracia plena também passa pelo controle sobre os aspectos digitais de nossas vidas.
Com isso em mente, a Câmara Municipal de Barcelona está optando pela utilização de tecnologias de código aberto com o objetivo de alcançar soberania tecnológica completa. Assim nasceu o plano Barcelona Ciutat Digital. O plano tem três eixos de atuação: transformação digital, inovação e empoderamento. Ele apresenta-se como uma alternativa para além da buzzword “smart city”. Trata-se da busca por um caminho alternativo para a soberania digital dos cidadãos.
Sem dúvidas, a digitalização pode melhorar a vida das nossas cidades e Barcelona parece estar comprometida em continuar a ditar moda nessas inovações. A inovação, neste caso, viria da sinergia entre inovação tecnológica e os valores de justiça econômica e social, solidariedade, ética e igualdade de gênero e raça. Como buscar ser uma cidade inteligente e, ao mesmo tempo, explorar plenamente as oportunidades oferecidas pelas tecnologias baseadas em seus dados? Qual o grande poder de transformação que a tecnologia tem, quando colocamos o cidadão no centro da estratégia?
A estratégia de cidade digital da capital catalã concentra-se em investimentos em serviços públicos digitais de infraestrutura pública que visam favorecer uma maior qualidade de vida e ser a porta de entrada para uma sociedade e uma economia mais sustentável e colaborativa.
Sem dúvidas, as oportunidades que a tecnologia nos oferece são inúmeras. Nossas cidades estão gradualmente se tornando “mais inteligentes”. Os sensores estão proliferando e medindo tudo, desde o fluxo de tráfego até as condições ambientais, possibilitando mais assertividade a tomada de decisões. Mas quem decide quais os problemas que merecem atenção da cidade? Se esses sensores ou sistemas de back-end são mesmo uma solução útil, a cidade é responsável pela empresa que os fornece? E, talvez o mais importante, de quem são os dados que estão no centro deste conceito?
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Barcelona está experimentando no sentido de construir um plano de cidade interconectada liderada pelos cidadãos e, com isso, pensando pilotos de economia compartilhada, com o objetivo de aproveitar ao máximo os dados locais. Algo inovador por estar na contramão do que vimos as cidades inteligentes fazerem ao longo dos últimos anos. O geógrafo Christopher Gaffney da Universidade de Zurich aponta como falha, em artigo ao periódico científico Journal of Urban Technology, a estratégia carioca. Segundo o especialista, embora o uso desses sistemas no Brasil seja bastante recente, as tecnologias das cidades inteligentes não estão sendo utilizadas para resolver problemas de desigualdade ou de governança sistêmica. A análise feita pelo geógrafo identifica que o Rio focou muito em projetos de curto-prazo e em uma coleta de dados que não é feita de forma sistemática, sem a visão de alimentar o planejamento urbano de longo-prazo. Para Daniel Locktoroff, CEO da empresa Sidewalk Labs e ex-vice prefeito para planejamento urbano de Nova Iorque, uma das principais barreiras para a transformação profunda e rápida dos centros urbanos é a falta de diálogo entre aqueles que vivem nas cidades de hoje e os que constroem as tecnologias do amanhã.
A Chief Technology Officer de Barcelona, Francesca Bria, afirma que as cidades inteligentes foram implementadas a partir de uma lógica centrada na tecnologia e não no cidadão. Estratégias assim fazem com que as cidades tomem como ponto de partida a infraestrutura e, só depois disso, pensem nos reais problemas que queriam solucionar. Segundo ela, há o risco de terminarmos em uma caixa-preta, em que as cidades perdem o controle sobre seus dados e, por conseguinte, sobre o potencial que esses dados têm na hora de fornecer insumos para a gestão.
Sob o ponto de vista da sustentabilidade das ações, o modelo de contratação das empresas fornecedoras de tecnologia muitas vezes gera a dependência de poucos provedores. Para Francesca, a dependência que a Microsoft gerou nos governos previamente é emblemática nesse sentido e acabou por tornar-se um empecilho para a inovação.
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Então, qual seria a alternativa? O plano de Barcelona nos dá algumas pistas de caminhos alternativos a serem traçados. Alguns pressupostos podem ser listados. 1. Ouvir o cidadão. Além de gerar pertencimento, ninguém conhece melhor os problemas da cidade do que quem vive nela. 2. Maximizar a interoperabilidade com tecnologias open-source. A lógica é simples, os softwares proprietários costumam ser pouco flexíveis na sua interação e compatibilidade com outras aplicações. Quando se usa um software open-source, a possibilidade de ter-se liberdade para integração a outros sistemas de Enterprise Resource Planning (Oracle, SAP, IBM, etc) e bancos de dados aumenta. 3. Quem possui os dados? o cidadão. A nova abordagem proposta pelo plano de Barcelona reconhece o cidadão como proprietário dos dados, colocando ele no centro da estratégia e não mais a tecnologia.
Este último ponto merece destaque. Barcelona, ao lado de Amsterdã e outros parceiros, faz parte do consórcio europeu Decode. O consórcio tem um financiamento de 500 milhões de euros da Comissão Europeia e busca desenvolver alternativas práticas sobre como usar a internet hoje. Os pilotos europeus buscam mostrar que mais valor social é gerado uma vez que o cidadão está empoderado do controle sobre seus dados pessoais e reconhece meios de compartilhar suas informações pessoais de forma protegida.
A ideia é explorar como poderíamos desenvolver uma economia centrada nos dados, onde dados gerados e coletados pelos cidadãos esteja disponível para a criação de valor de forma comum e com privacidade apropriada. A interconectividade liderada pelo cidadão é a visão que o plano de Barcelona traz. Outra experiência também pode servir de inspiração, como Bristol, que buscou criar uma visão de city commons para ajudar os cidadãos a identificarem as suas necessidades, criar as ferramentas para pensá-las e gerenciar os dados resultantes de forma comum.
No velho mundo, esse tema parece se proliferar entre as cidades. Resta saber qual será a cidade pioneira na América Latina a pensar a cidade inteligente verdadeiramente centrada no cidadão.
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